sábado, julho 28, 2007

O Arquivista I

A BD dos belgas François Schuiten e Benoit Peeters, “O arquivista”, da série As cidades obscuras (publicação da 1ª Edição em Junho de 2003. Meribérica/Liber Editores, Lda.), fala-nos de uma espécie de misticismo que envolve uma série de cidades as quais irão ser redescobertas por um arquivista através dos documentos que analisa na sua profissão.

Tratam-se de cidades que não se encaixam nas coordenadas espácio-temporais do arquivista, e que obedecem a conceitos completamente místicos e misteriosos. Assim a personagem (e nós próprios com ele) mergulha no mistério de algo que só está ao seu alcance através de documentos bafientos que analisa como uma obrigação laboral e laica. Esta ideia não deixa de ser interessante, porque é pela rotina diária e chatices laborais laicas, ligadas ao quotidiano, (que começa com a entrega de um dossier), que a personagem descobre o mundo obscuro e místico de ambiência pró-religiosa. Embora o relate sempre com uma linguagem que só levemente deixa passar o espectro emocional e onde são escassas as adjectivações, é o próprio sarcasmo que dá o mote introdutório ao texto: “Caixas e caixas de documentos, um verdadeiro delírio. O pior é que todos os outros julgavam que eu tinha encontrado um trabalho bem remunerado. Uma sinecura… Que ideia!!” (p.6).

A crítica também é uma constante e perpassa o papel para se estender à realidade do próprio leitor: “A economia, as ciências políticas, as belas artes, são domínios que todos respeitam… mas “Mitos e lendas”, é uma disciplina menor, ridicularizada, até! Uma subsecção. Como dizem!”. Ora nesta frase não só o autor dá a indicação do tema da BD – “os mitos e lendas” – mas também o “arquivista” revela o seu descontentamento com o trabalho que lhe foi confinado – uma chatice sem reconhecimento sócio-profissional. Tanto assim é, que esta parte introdutória termina com a seguinte frase: “Não há nada como ver como somos alojados! Relegados para as águas-furtadas, como os párias, e com todos estes dossiers que é preciso carregar. Trinta e sete anos nos arquivos, para chegar a isto, é demais!”.

Portanto a obra começa com um “anúncio” feito pela personagem sobre as seguintes páginas. Mas trata-se de uma perspectiva de futuro que não é feliz à partida, sendo pelo contrário, algo que se avizinha extremamente trabalhoso, aborrecido e sem reconhecimento social. Ora, isto lembra-nos alguma coisa não? Nas nossas sociedades não será isto mesmo que se passa relativamente à maioria das funções que desempenhamos? O “arquivista”, de uma forma discreta, põe o dedo na ferida de alguns dos nossos próprios problemas sócio-culturais, apresentados de forma breve no Canto da Cotovia – o trabalho V.s reconhecimento social; profissões reconhecidas socialmente V.s importância e papel dessas profissões desempenhadas na sociedade; compromisso com o trabalho Vs paixão pelo trabalho; o misticismo Vs realidade; religiosidade Vs laicismo. Os mitos e lendas enquanto factores que ficam marcados nas estruturas arquitectónicas das cidades mortas; etc.

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