quinta-feira, outubro 25, 2007

Novilingua ou a decadência da sociedade?

Chamou-me à atenção este assunto ao tomar consciência num noticiário televisivo, da pobreza, tanto de vocabulário como das construções morfológicas, das frases com que os jornalistas nos apresentam diariamente os acontecimentos que vão no mundo. A linguagem coloquial parece ter desaparecido da nossa vida. E interrogo-me se terá sido sempre assim e isto é um mero efeito circunstancial; ou se, de facto, o resumo do vocabulário que se observa hoje em dia é mais do que um resultado sintomático de uma qualquer teoria da conspiração tecida pela ardil paranóia pública. Voltando aos tempos idos, basta pegar num texto vulgarmente conhecido para testarmos a primeira hipótese. As “Trovas” escritas no século XVI por Bandarra, consistem num texto literário e profético sobre os desígnios, quiçá espirituais, de Portugal. Bem sei que foram reescritas inúmeras vezes alterando-se vocabulário, além de que a edição de que disponho não será nem de perto nem de longe, a mais antiga. Mas de qualquer modo servirá de exemplo enunciar aqui alguns versos do texto que servirá para ilustrar o que digo. “Como nas Alcaçarias / Andam os couros ás voltas, / Assim vejo grandes revoltas / Agora nas Cleresias. / Porque usam de Simonias / E, adoram os dinheiros, / As igrejas pardieiros, / Os corporais por mais vias” (Gonçalo Annes Bandarra, As Profecias do Bandarra, Mem Martins, Novalis, 2001, p.11). O texto prossegue por várias páginas num tom que dizem os entendidos ser popular e de fraca qualidade literária. Não quero por em causa a questão da pobreza das trovas em termos literários. Mas é preciso pensar que o seu autor não passava de um sapateiro que tinha a sorte de ter aprendido a ler e a escrever. A ideia que temos desse tempo é que o povo era todo ignorante, de dentes podres e a cheirar mal. Que a sua instrução era nula e completamente desconhecedora dos conhecimentos das ciências e das humanidades. Ora, neste tempo, surgiu um sapateiro em Trancoso que sabia ler e escrever; e mais, escreveu um livro em língua portuguesa, dos mais lidos de sempre. Estranho este facto, deveras. Mas isso não será objecto neste momento. O que nos interessa aqui é esclarecer, não o ponto de vista do autor, mas o ponto de vista dos seus leitores ao longo da história. Como é que um povo pobre em vocabulário demonstra tal interesse na leitura de uma obra tão rica de vocabulário e ainda por cima de registo histórico? Sim, porque a pobreza literária das trovas não se relaciona com a riqueza do seu vocabulário, parece-me. Escolhi esta obra precisamente por isso. Não um Camões clássico de vocabulário rebuscado. Mas um simples Bandarra, pobre literariamente, para comparar com o vocabulário comummente utilizado na época actual. Comparamos assim pobreza com pobreza e já levando em conta as alterações linguísticas que a língua sofreu ao longo dos tempos. Outro autor, talvez menos polémico que poderemos chamar à cena é Gil Vicente. O dramaturgo do povo possuía, este sim, grande qualidade nos textos que escrevia. E no entanto era popular e parecia que todos entendiam o que os seus actores diziam, apesar do seu vocabulário indiscutivelmente rico. Era aplaudido pelo povo português que muito se ria dos comportamentos das suas personagens tipo construídas de forma quase anedótica. Quererá isto dizer alguma coisa? Em primeiro lugar, talvez que de facto a língua portuguesa esteja a sofrer uma contracção no seu vocabulário e na composição da sua estrutura sintagmática. Em segundo lugar, que essa teoria, pode ser relacionada com fenómenos do tipo politico, social e cultural, mas também económico, religioso, etc., aquilo que Marcel Mauss designou por facto social total.

George Orwell em “1984” descreveu um mundo onde a ditadura do pensamento único e do pensar-crime imperavam, liderados por uma redução drástica do vocabulário dos habitantes. Uma das personagens é mesmo profissionalmente especializada na criação de um dicionário que reduzisse as palavras ao mínimo indispensável, com o fim de evitar pensamentos “supérfluos”, perigosos para o bom funcionamento de tal sociedade. Não iremos tão longe nas nossas especulações. Deixamos isso no entanto como hipótese de desenvolvimento futuro. Gostaria de enveredar por outro caminho mais naturalmente lógico. O do nascimento, desenvolvimento, e morte das sociedades. Tudo quando nasce é pequeno, tudo cresce e tudo se corrompe fisicamente pelo tempo até ao momento do seu desaparecimento material. As sociedades são uma espécie de criaturas vivas e temos conhecimento das grandes civilizações do mundo que assim lhes aconteceu também. Nasceram, cresceram, imperaram, dominaram, e envelheceram acabando por se definhar um dia. Quero crer que a língua acompanha este processo. Quando nasce é limitada a alguns termos. Cresce e desenvolve-se junto com o seu povo e um dia comprime-se e acaba por cair em desuso com a sua extinção. Portanto, a língua é um indicador excelente do estado de uma civilização. Quando é rica é porque as suas gentes estão em grande expansão; quando começa a ser pobre indica-nos a decrepitude cultural de uma sociedade que estará brevemente em vias de extinção.

Se a nossa riqueza liguística está a perder-se, a lição não deixa de ser deveras preocupante. Algo se passa. E ainda que muita gente de fora fale a mesma língua, não é isso que faz a sua riqueza e simultaneamente a preservação da existência do seu povo. Por vezes até poderá acontecer precisamente o contrario. Pois à corrupção de uma língua misturada com outras línguas corresponde uma perda de raízes culturais verdadeiramente genuínas e que, se por momentos ainda dão o ar da sua graça, não podem esperar pela actuação do tempo quando as verdadeiras identidades nele se perderem. É assim que olhamos para trás e não sabemos nada acerca de nós próprios. Ficarão os frutos e morrerão as árvores. Mas os frutos nada serão sem as árvores.

1 comentário:

Bruno Freire disse...

acutilante as tuas observações, como é que podemos restituir força a palavras extremamente desgastadas como liberdade, revolução,...
Toda a gente anda mto contente pk pode dizer o que quer, vivem (nós tbm) em liberdade..Oh malfadada liberdade esta...