domingo, julho 15, 2007

O lugar dos livros

Há quem diga que os livros servem de companhia, de amigos, de confessores, de mestres, enfim, de imensas coisas que justamente, mas insuficientemente, se lhes atribui como méritos de uma quase “bengalinha” de que os indivíduos se socorrem face a uma sociedade que muito deixa a desejar nesses “buracos” que os livros supostamente preenchem. Neste sentido os livros assumem o papel de uma espécie de super-heróis contra o “mal”, na sua tarefa silenciosa de segredar ao nosso ouvido palavras que, consoante nos fazem mais ou menos sentido, passam a assumir um lugar na hierarquia dos livros da nossa vida. E quando começamos a ler um livro, enchemo-nos de um Estado de Graça que é a esperança de que aquele livro particularmente nos encha de verdade. Os livros de facto, têm um compromisso com a verdade que é em última instância o seu maior objectivo e projecto de vida.
Contudo nunca pensamos no lado grandioso dos livros, à parte daquilo que pode significar para uma pessoa, no seu papel nas direcções de toda a humanidade, ou pelo menos de algumas sociedades de determinadas coordenadas espacio-temporais. Esta grandiosidade das obras literárias, filosóficas e científicas, particularmente a mim, fazem-me pensar na antiga Biblioteca da Alexandria construída no século III no reinado de Ptolomeu II do Egipto, onde o espólio de toda uma Era histórica registado em milhares de rolos de papiros se foi perdendo ao longo dos seus lendários incêndios e ofensivas até ter sido definitivamente destruida em 646 (1). É quando choramos os nossos mortos que lhes damos valor. E é quando os recordamos que podemos lutar para repor a verdade na sua memória, para que essa memória seja honrada e não deturpada em nome sabe-se lá do quê que dá jeito à hipocrisia política e social que apodrece o nosso sistema.
Há pessoas que são como os livros. Ocupam um espaço humilde na vida, na sua própria vida, para não falar da vida dos outros homens, da sociedade, da sua época histórica. E no entanto assumem um compromisso com a verdade maior do que muitos outros ilustres. Essas pessoas são as pessoas-livros. Encerram conhecimento verdadeiro e o seu papel na vida é serem lidas quando alguém é despertado pela curiosidade. Contudo muitas, apesar disso, ficam toda a vida na prateleira sem serem abertas. Destas pessoas-livros algumas deixam registo post-mortem. Um testemunho dos seus pensamentos. É assim que anos mais tarde, muitos às vezes, alguém pega nesses registos e toma conhecimento da existência de uma pessoa-livro que deixou uma verdade registada para toda a eternidade. E essa verdade, quando é pela primeira vez lida muitos séculos após a morte do seu autor, liberta-se finalmente e passa a ser também a verdade exclusiva de outra pessoa. Os livros têm destas coisas. O escritor escreve apenas uma verdade. Imensas pessoas podem partilhá-la. Mas ela não deixa de ser a verdade exclusiva de cada uma dessas pessoas.
Não há nada tão anónimo como as pessoas-livro. Um livro é apenas mais um livro. Uma pessoa é apenas mais uma pessoa. Um livro é um contrato de verdade de uma pessoa singular, assinado para com a vida.

Este foi o pensamento que me suscitou o desafio do Caturo lançado no Gladius. Foi assim o interesse que nos fez pensar em postar aqui sugestões e comentários de leituras. E dito isto, passo a sugerir um livro. Apenas um livro.

De George Orwell, 1984. Publicado pela primeira vez em 1949, trata-se de um livro que fala do futuro mas que muitas das suas previsões/profecias podem ser encontradas já no presente. Um livro que dá vontade de salvar as personagens pois não nos são, de todo, estranhas a nós próprios. E ainda uma história que temos a certeza ser o lugar da história onde infelizmente temos sido cada vez mais a pouco e pouco conduzidos. Um livro profético sem dúvida.

Boa leitura.



(1) Se este último incêndio foi acidental, como se quer fazer crer, ou se foi fogo posto por um fundamentalista muçulmano, é uma questão que ainda não está bem explicada. O historiador muçulmano Abd al-Latif (1160-1231) escreveu: "A biblioteca de Alexandria foi aniquilada pelas chamas por Amr ibn-el-As, agindo sob as ordens de Omar, o vencedor". Esse Omar se opunha aliás a que se escrevessem livros muçulmanos, seguindo sempre o princípio: "o livro de Deus é-nos suficiente". Era um muçulmano recém-convertido, fanático, odiava os livros e destruiu-os muitas vezes porque não falavam do profeta. É natural que terminasse a obra começada por Julio César, continuada por Diocleciano e outros.
Cf. Jacques Bergier,
Os Livros Malditos. Editora Hemus, 1971.

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