sexta-feira, maio 16, 2008

O Duplo Pensar

René Magritte, 1972


O “duplo pensar”, conceito tão bem explorado por George Orwell no célebre 1984, adquiriu na nossa sociedade, contornos tão claros e óbvios como uma toranja. A toranja é um fruto cuja cor de laranja, por fora, convida-nos a comê-lo devido ao seu aspecto delicioso. No entanto, mal pomos a fruta na boca apercebe-mo-nos de que afinal é azeda e que apenas agrada a paladares mais invulgares. De facto, assim é com os discursos dos políticos que nos governam. Se as palavras são bonitas e agradáveis aos nossos ouvidos, o certo é que na maioria das vezes elas escondem armadilhas de sentido, indicando significados diametralmente diferentes, ou mesmo opostos, àqueles que inicialmente tinha-mos suposto. Certos conceitos, estão longe de serem objectivos por muito que se tente fundamentá-los, cientificamente até.

Sem querer parecer demasiado maniqueísta, a política trata, antes de mais, de relações de poder e revela sobretudo duas posições numa rede de relações sociais – a posição do dominante e a posição do dominado. Ora a visão do dominante nunca pode coincidir com a visão do dominado porque ambos se encontram em lugares distintos relativamente ao objecto em questão. O mesmo se repercute nos conceitos que circulam na nossa sociedade e na nossa cultura. De facto, cada um de nós possui uma relação distinta, pessoal e estreita, com a linguagem. Mas essa relação torna-se mais dissemelhante quando os indivíduos possuem interesses diametralmente opostos relativamente ás ideias que esses conceitos veiculam. Assim sendo, é certo que cada conceito insere em si, pelo menos duas possibilidades de leitura. E entre ambos surge todo um jogo, toda uma manipulação das palavras, de modo a convencer o outro de determinada teoria. A técnica não é nova. Reside simplesmente no domínio intelectual do interesse alheio, para lhe tentar vender um produto ou uma ideia. Mas em termos políticos esta técnica funda-se na prática demagógica da conquista das simpatias do povo, para posteriormente o conduzir a um lugar que quase sempre se tem revelado, como antagónico àquele que era o lugar prometido por uns e esperado por outros.

O duplo pensar que hoje em dia é prática corrente por políticos na nossa sociedade, consiste na realidade nesta prática demagógica de domínio intelectual dos conceitos e das palavras. Um povo culto é um povo que rouba do poder dominante uma das suas principais ferramentas de dominação e dos seus apanágios. Como então incentivar o conhecimento nas classes subjugadas sem correr o risco de daí advir contrapartidas perigosas ás classes dominantes? O conhecimento generalizado, propagandeado como objectivo fundamental dos sistemas democráticos e que é, em si mesmo, condição absolutamente necessária ao exercício pleno da democracia, revela-se-nos como a última oportunidade de uma verdadeira liberdade de escolha, porque baseada no domínio consciente das suas implicações. Por isso, não arrisco em dizer que não há verdadeira democracia sem que o povo seja igualmente culto. Melhor ainda, antes de tudo compete a um verdadeiro Governo Democrático traçar politicas que incentivem a cultura e o conhecimento, pois além do mais, é pela cultura que a sociedade pode evoluir de facto. O dulplo pensar, é em suma, uma arma que tem desde sempre sido usada contra o povo. É preciso inverter esta situação e dotá-lo da mesma ferramenta intelectual com que tem sido sempre submetido ao longo da história.

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