sexta-feira, dezembro 19, 2008

O Pensamento Único (1) - Fradique Mendes

Fradique Mendes, foi uma personagem inventada pelo grupo cenáculo (dos ilustres Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz). Era um poeta, excêntrico, viajado, culto, sempre a par das últimas conquistas da ciência, e um irreverente, à semelhança de Baudelaire. Da sua obra faz parte uma vasta correspondência, da qual destacamos a seguinte carta, escrita ao seu alfaiate, pela maneira crítica e sagaz com que aborda a questão do Pensamento Único. Actualmente, este tema é um dos que nos são mais caros, formantando a nossa civilização e limitando a nossa liberdade de expressão. O pensamento único, é pois o resultado de um molde de sapatos, onde é obrigatório caberem todos os pés, resultando daí: todos os calos, feridas e doenças que caracterizam a nossa sociedade; e toda a perseguição política e ideológica que se faz sentir a quem ousa calçar um número ou modelo diferente de sapatos.

A E. STURMM, ALFAIATE

Lisboa, Abril.

MEU bom Sturmm.--A sua sobrecasaca é perfeitamente insensata. Ali a tenho, arejando à janela, nas costas de uma cadeira; e assenta tão bem nessas costas de pau, como assentaria nas do comandante das Guardas Municipais, nas do Patriarca, nas de um piloto da barra ou nas de um filósofo, se o houvesse nestes reinos. Quero, pois, severamente dizer que ela não possui individualidade.

Se V., bom Sturmm, fosse apenas um algibebe, embrulhando a multidão em pano Sedan para lhe tapar a nudez-- eu não faria à sua obra esta crítica tão alta e exigente. Mas V. é alemão, e de Conisberga, cidade metafísica. A sua tesoura tem parentesco com a pena de Emanuel Kant, e legitimamente me surpreende que V. não a use com a mesma sagacidade psicológica.

Não ignora V., decerto, que ao lado da filosofia da história e de outras filosofias, há ainda mais uma, importante e vasta, que se chama a filosofia do vestuário; e menos ignora, decerto, que aí se aprende, entre tanta coisa profunda, esta, de superior profundidade: que o casaco está para o homem como a palavra está para a ideia.

Ora, para que serve a palavra, Sturmm? Para tornar a ideia perceptível e transmissível nas relações humanas--como o casaco serve para tornar o homem apresentável e viável através das ocupações sociais. Mas é a palavra empregada sempre em rigorosa concordancia de valor com a ideia? Não, meu Sturmm.

Quando a ideia é chata ou trivial, alteia-se, revestindo-a de palavras gordas e aparatosas-- como todas as que se usam em política.

Quando a ideia é grosseira ou bestial, embeleza-se e poetiza-se, recobrindo-a de palavras macias, afagantes, canoras--como todas as que se usam em amor.

Por outro lado, escolhem-se palavras de uma retumbância especial para reforçar a veemência da ideia--como nos rasgos à Mirabeau--ou rebuscam-se as que pela estranheza plástica ajuntam uma sensação física à emoção intelectual-- como nos versos de Baudelaire

Temos pois que a palavra opera sobre a ideia, ou disfarçando-a ou acentuando-a. Vai-me V. seguindo, perspicaz Sturmm?

Tudo isto se aplica exactamente às conexões do casaco com o homem.

Para que talham os alfaiates ingleses certas sobrecasacas longas, rectas, rígidas, com um debrum de austeridade e ressudando virtude por todas as costuras? Para esconder a velhacaria de quem as veste. Você encontra em Londres essas sobrecasacas, nos meetings religiosos, nas sociedades promotoras da moralização dos pequenos patagónios e nos romances de Dickens. E para que talham eles esses fraques audazes bem acolchoados de ombros, quebrados e cavados de cinta, dando relevo aos quadris--sede da força amorosa? Para acentuar os corpos robustos e voluptuosos a que se colam. Você vê desses fraques aos Lovelaces, aos caçadores de dotes e a toda a legião dos entretenus.

Disfarçando-o ou acentuando-o, o casaco deve ser a expressão visível do carácter ou do tipo que, cada um, pretende representar entre os seus concidadãos.

Quem lhe encomenda pois um casaco, digno Sturmm, encomenda-lhe na realidade um prospecto. E nem precisa o alfaiate que aprofundou a sua arte, de receber a confissão do freguês. As ligeiras recomendações que escapam, inquietas e tímidas, na hora atribulada da «prova», bastam para que ele compreenda o uso social a que o cliente destina a sua farpela... Assim, se um cavalheiro de luvas pretas, com uma luneta de ouro entalada entre dois botões do colete, que move os passos com lentidão e reflexão, e, ao entrar, pousou sobre a mesa um número do Jornal do Economista, lhe diz, num tom de mansa reprovação, ao provar o casaco: «Está curto e justo de cinta--V. deve logo deduzir que ele deseja aquelas abas bem fornidas, flutuantes, que demonstram abundancia de princípios, circunspecção, amor sólido da ordem e conhecimento miúdo das pautas da Alfândega... Vai-me V. penetrando, bom Sturmm?

Ora, que lhe murmurei eu, em mau alemão, ao provar a sobrecasaca infausta? Esta fugidia indicação: «Que cinja bem!» Isto bastava para V. entender que eu desejava, através dessa veste, mostrar-me a Lisboa, onde a ia usar, sinceramente como sou--reservado, cingido comigo mesmo, frio, céptico e inacessível aos pedidos de meias libras... E, no entanto, que me manda V., Sturmm, num embrulho de papel pardo? V. manda-me a sobrecasaca que talha para toda a gente em Portugal, desgraçadamente: a sobrecasaca do conselheiro!

Digo «desgraçadamente»--porque vestindo-nos todos pelo mesmo molde, V. leva-nos todos a ter o mesmo sentir e a ter o mesmo pensar. Nada influencia mais profundamente o sentir do homem, do que a fatiota que o cobre. O mais ríspido profeta, se enverga uma casaca e ata ao pescoço um laço branco, tende logo a sentir os encantos dos decotes e da valsa; e o mais extraviado mundano, dentro de uma robe de chambre, sente apetites de serão doméstico e de carinhos ao fogão.

Maior ainda se afirma a influência do vestuário sobre o pensar. Não é possível conceber um sistema filosófico com os pés entalados em escarpins de baile, e um jaquetão de veludo preto forrado a cetim azul leva inevitavelmente a ideias conservadoras.

Você, pondo no dorso de toda a sociedade essa casaca de conselheiro, lisa, insípida, rotineira, pesabunda--está simplesmente criando um país de conselheiros!

Dentro dessa confecção banalizadora e achatante, o poeta perde a fantasia, o dândi perde a vivacidade, o militar perde a coragem, o jornalista perde a veia, o crítico perde a sagacidade, o padre perde a fé--e, perdendo cada um o relevo e a saliência própria, fica tudo reduzido a esse cepo moral que se chama o conselheiro! A sua tesoura está assim mesquinhamente aparando a originalidade do país! Você corta, em cada casaco, a mortalha de um temperamento. E se Camões ainda vivesse--e V. o vestisse--tínhamos em lugar dos Sonetos, artigos do Comércio do Porto.

Sem comentários: